A quarentena e o isolamento social podem acentuar as perturbações alimentares. E não é vergonha nenhuma pedir ajuda.
Portugal entrou em isolamento social e quarentena há quase um mês. A diminuição do contacto social característica de períodos de isolamento pode ter um impacto psicológico negativo, principalmente em indivíduos que estejam mais susceptíveis.
Um artigo publicado recentemente na revista Lancet mostrou que há várias respostas psicológicas como o medo, a ansiedade, a revolta e a apatia. Apesar de no fim do período de quarentena estes sintomas parecerem diminuir, quando já há histórico de doença psiquiátrica, é possível que a ansiedade possa persistir mais de 4 meses após a quebra inicial da rotina.
Habitualmente, as condições psiquiátricas que se podem manifestar com o isolamento (como a ansiedade ou a depressão) estão também presentes em quadros de perturbação do comportamento alimentar: mais de 70% dos indivíduos com perturbações do comportamento alimentar sofrem também de doença mental.
A taxa de mortalidade e de suicídio em pacientes com perturbações do comportamento alimentar é superior às da população em geral, e vários autores defendem que a anorexia nervosa é a doença mais letal de todas as doenças psiquiátricas. Apesar de existirem diferentes tipos de perturbação do comportamento alimentar, sendo a anorexia nervosa e a bulimia nervosa as mais conhecidas, o isolamento social é um factor de risco comportamental transversal à maioria.
Apenas 20% dos indivíduos com perturbações do comportamento alimentar procura tratamento, a maioria dos casos não chega a ser sequer diagnosticada, pelo que mais literacia, informação e atenção a esta problemática é urgente, principalmente dado o elevado índice de reincidência destas doenças. As mulheres são as que mais procuram tratamento, mas estima-se que entre 10 a 36% dos doentes com perturbações do comportamento alimentar sejam homens - e, neles, o estigma parece ser ainda maior.
As perturbações do comportamento alimentar são um problema de saúde pública, ainda embrenhado em estigma e vergonha, do qual falamos muito pouco e pelo qual não temos feito o suficiente. E períodos prolongados de isolamento e com diminuída interação social são terreno fértil para facilitar e ocultar comportamentos característicos de doenças como a anorexia nervosa, a bulimia nervosa, entre outras. Isto acontece porque é habitual, em pessoas que já têm comportamentos alimentares problemáticos, usarem a ingestão de comida - aumentada ou diminuída - como tentativa para atenuar estados emocionais negativos, como a raiva, frustração e tédio. E estes todos são característicos de períodos de isolamento.
Além disso, estar limitado a casa leva uma pessoa a ter um gasto energético inferior ao habitual - o que pode conduzir ao pânico em relação à possibilidade de ganhar peso ou piorar a composição corporal, tornando-se um factor de stress significativo. Por outro lado, a atenção mediática dada a estratégias de gestão de peso, ou dietas, é utilizada como desculpabilização de comportamentos erráticos por muitas pessoas, que podem sentir que a narrativa social imposta pela Covid-19 valida as suas estratégias alimentares.
O eventual desleixo com rotinas diárias durante o isolamento, a diminuição de eventos sociais onde seria expectável comer, e a maior facilidade em encobrir purgas, ingestões alimentares insuficientes, ou compulsão, proporciona a evolução negativa das perturbações.
Tem sido avançado por alguns investigadores que a instabilidade nos períodos de sono e descanso, muito mais propícia a ocorrer em período de isolamento social, está também associada a piores padrões de ingestão alimentar em doentes com perturbação alimentar. Isto vai ainda ao encontro da teoria defensora de uma forte interacção entre os sistemas regulatórios da fome e do sono.
Dada a possibilidade de um período extenso de isolamento e quarentena, é particularmente relevante que doentes com perturbações do comportamento alimentar não atrasem o pedido de ajuda. Durante o isolamento, a tecnologia tem um papel importante, não só permitindo o contacto com profissionais de saúde e com compromissos de terapia e tratamento remoto, como também na manutenção da comunicação do indivíduo com a sua rede de apoio, familiares e amigos.
Em Portugal, entre 2000 e 2014, houve um total de 4485 admissões hospitalares associadas a perturbações do comportamento alimentar, 5% das quais envolviam tentativas de suicídio7. Isto sem contar com os doentes com perturbação do comportamento alimentar que se suicidam. Isto sem contar com quem vive anos sem receber diagnóstico, nem sequer tratamento, muito menos hospitalização.
Créditos da Notícia: Diário de Notícias