Com os restaurantes fechados e sem as suas sobras, pede-se às famílias que preparem as refeições a pensar em mais uma pessoa. Os voluntários do projecto Lugar Para Mais Um tratarão de fazer chegar essa dose de comida caseira a quem mais sente falta dela.
Damos pelo acentuado arrefecimento nocturno mesmo antes de batermos à porta e de subirmos os três lanços de escadas de madeira que nos levarão a casa dos Costa Lima, em Algés. Está na hora de começar a tratar do jantar para o casal e os seus três filhos, dos 20 aos 14 anos, depois de um dia de teletrabalho e estudo à distância. Enquanto os mais novos se escondem nos quartos no piso de cima, na mesa da cozinha, junto ao robô, já está um monte de bifes de peru temperados e uma mão cheia de cenouras que irá adocicar o arroz. Todos os dias, ao almoço e ao jantar, são cinco a comer. O que custa arranjar lugar para mais um?
“É o mínimo que podemos fazer, embora seja muito pouco”, justifica-se Ana, 46 anos, enquanto frita os bifes na frigideira e entrega ao seu robô de cozinha a tarefa de terminar o arroz. Aderiu ao projecto Lugar Para Mais Um assim que ele foi lançado, em maio do ano passado, para ajudar a Refood Belém – como todos os outros núcleos desta associação de combate ao desperdício e ajuda alimentar, ficou sem a sua principal fonte para dar a quem precisa: o que sobrava dos restaurantes e que iria, muitas vezes, parar ao lixo.
Mafalda e Joana Vasconcelos, 21 e 22 anos, são as duas irmãs que estão por trás desta ideia que andou meia escondida até que os alunos da cadeira de Implementação de Projectos com Impacto, da Universidade Nova de Lisboa, pegaram nela, em Setembro, e ajudaram a expandi-la por toda a cidade. Apesar de na altura os restaurantes já estarem abertos, a Refood aceitou de bom grado a continuidade desta ajuda. “Idealmente, este projecto não vai existir para sempre, mas aqui estaremos enquanto for preciso”, garante a mais velha das irmãs.
Hoje, o Lugar Para Mais Um abrange a grande Lisboa, apoiado em oito núcleos da Refood. E já existe em Almancil, no Algarve. “Com 500 famílias inscritas para doar, 130 voluntários para as recolhas, conseguimos reunir cerca de mil refeições por semana “, assegura Joana, satisfeita com o alcance do projecto.
No dia indicado pela família, recebe-se uma mensagem pela manhã a saber se sempre devem passar lá por casa à hora do jantar e se são precisas caixas para acomodar a comida (2 euros delas dão para dois meses, se a dádiva for semanal).
Cada pessoa que se inscreve no link disponibilizado na conta do Instagram deve assinalar qual o dia ou dias em que pretende assegurar semanalmente pelo menos uma refeição para quem mais precisa. No caso da família Costa Lima fazem-no de 2ª a 5ª feira (não há recolhas à sexta). E mandam sempre aquilo que almoçam ou jantam, seja esparguete com atum e molho de tomate ou bifes, como é o caso de hoje.
Ana, Tomás e os três filhos já estão à mesa quando José Franco Dias, 21 anos, sobe a escadaria para apanhar a refeição. Xavier, o mais novo, é quase sempre a vítima que interrompe o jantar para ir levar a caixa, mas não se importa – esta paragem até já entrou na rotina familiar.
O voluntário que faz uma rota todas as semanas tem o amigo João Cáceres Monteiro, 22 anos, à espera, parado do outro lado da rua, em quatro piscas, ao volante do seu Volkswagen Polo. Conhecem-se há anos e também são amigos da mentora desta ideia. De facto, foi assim que o Lugar Para Mais Um cresceu de núcleo em núcleo, contando com a ajuda de pessoas de confiança.
José e João estão com excesso de tempo livre, confessam, enquanto procuram a última porta a que vão bater nesta noite. Acabaram os seus cursos no início do ano e não têm grandes perspectivas de emprego pela frente, pelo menos para já. Então, decidiram ajudar, nestas recolhas e também no Banco Alimentar Contra a Fome. A família de José Franco Dias também faz comida para mais um às quintas.
O carro de João parou 10 vezes, na zona entre o Restelo e Algés, para apanhar a comida que os voluntários fizeram em casa. No final, a bagageira do Polo estava bastante recheada. Os braços dos dois amigos quase não chegaram para transportar as caixas até ao núcleo da Refood Belém, em frente ao estádio do Belenenses, onde termina a rota. Para eles e para os outros quatro carros que também andaram na recolha.
“As pessoas são incríveis, às vezes até fazem bolos”, conta João Cáceres Monteiro, a segurar uma recheada caixa de produtos alimentares que um senhor lhes entregou hoje.
As portas da Refood Belém ainda se mantêm abertas, apesar da hora, pois há que recepcionar todos os alimentos, guardar as frutas, legumes e bolos e congelar as caixas que se podem guardar até sexta (ao fim de semana não há fonte de alimentos e as famílias devem levar o cabaz reforçado para esses dias).
Lá dentro está Maria João, 55 anos, voluntária, algo desanimada por a pandemia ter acabado com o bom ambiente deste local de solidariedade. Se a vida corresse normal, haveriam de sair para recolher os restos da comida dos restaurantes, das pastelarias e dos supermercados. Depois, outra equipa estaria no núcleo para fazer os cabazes para as famílias referenciadas, que iriam buscá-los ao final do dia.
Agora, a Junta de Freguesia de Belém manda que se cozinhem centenas de refeições na escola primária de Caselas para serem distribuídas por vários locais de distribuição de comida a quem passa fome. Aqui ao núcleo as refeições chegam em sacos para serem entregues à hora do almoço.
“Muitas vezes não chega para as cerca de 120 famílias que apoiamos, por isso o que este projecto recolhe é uma grande ajuda, especialmente ao fim-de-semana, quando não existem estas refeições da junta”, explica Maria João, enquanto Luís Milheiro, outro voluntário da Refood que ajuda a arrumar a comida recolhida pelo Lugar Para Mais Um, vai anuindo com a cabeça em sinal de aprovação, como quem partilha a dor de as rotinas continuarem de pernas para o ar.
Créditos da Notícia: VISÃO